para Ernesto Bonato


“A observação do artista pode atingir uma profundidade quase mística. Os objetos iluminados
perdem os seus nomes: sombras e claridades formam sistemas e problemas particulares que não
dependem de nenhuma ciência, que não aludem a nenhuma prática, mas que recebem sua existência
e todo o seu valor de certas afinidades singulares entre a alma, o olho, e a mão de uma pessoa
nascida para surpreender tais afinidades em si mesmo, e para as produzir” (Paul Valéry)

Há muito tempo era falado por aqui em Barão Geraldo que só faltava mar e Ernesto Bonato
trouxe. Eu vi esse mar em diversas vezes desde que encontrei Ernesto casualmente quando ele se
instalava no bairro onde moro.

Vi a imagem que originou as estampas. Vi as tábuas, que se tornariam as matrizes, chegando.
Até ajudei a lixá-las. Vi o plástico da plotagem aderido à madeira. Vi Bonato gravando, mergulhado
numa concentração meditativa. Vi os primeiros testes de impressão. Vi a cautela que exige a
execução de um trabalho dessa envergadura. E, por fim, vi a exposição montada. Mas ver não é
tudo.

A imagem é o ponto de chegada e também a ponta do iceberg de um processo imenso, que
não começa com o projeto e nem termina com a exposição. O processo ao qual me refiro é o cultivo
de uma atitude de vida, e para Ernesto esse processo é a própria vida. Sendo assim, não há nada de
mais precioso. Fazer imagens com beleza precisa, pensar com rigor almejando o certo em todas as
circunstâncias nada mais é do que uma decorrência natural de uma pessoa que ama a vida acima de
tudo e de todas as coisas.

E qual seria, para nós, a utilidade da Arte se não nos lembrasse disso? O que seria o artista
senão aquele quem se alça acima de nossa compreensão comum e nos indica que além de nossas
angústias há algo valioso, venerável e verdadeiro?

Antes de tudo isso, entretanto, o artista é um fazedor que conhece profundamente a matéria
com a qual trabalha. Da profundidade desse conhecimento surge uma ética que se torna o eixo em
torno do qual se organiza não apenas a poética, mas todo o pensamento e toda a vida. É isso que
Ernesto mostra a todos nós: o esforço de conhecer intensamente aquilo que se faz e com o que
trabalha, nos coloca face a face inevitavelmente com a sabedoria mais preciosa a qual podemos
aspirar. Esse é o primeiro dos efeitos de maré , onde cada gesto é fruto de um planejamento
reflexivo minucioso.

O gravador sabe que para a imagem se sustentar tudo deve estar no lugar certo. A matriz é um
plano reflexivo que devolve ao artífice tudo o que recebe. Em última análise, a matriz é o espelho
das ações e do pensamento. Este é o principal fundamento ético da gravura e todo gravador sabe
que é impossível contorná-lo. Ernesto demonstra não somente o conhecimento detalhado desse
fundamento, mas se utiliza dele de maneira magistral.

A maré é um acontecimento que mobiliza todos os níveis do oceano, toda a água marítima
sente os efeitos do ciclo lunar. Deste modo, a maré conecta Terra e espaço sideral. A maré tornou a
vida possível em nosso planeta ao provocar um movimento contínuo que tem configurado a
biosfera.

A imagem do mar nesta exposição de Ernesto surge como um símbolo carregando consigo o
enigma característico de todos os grande narradores: o símbolo concentra infinitos significados que
pulsam incessantemente. Tudo é dito sem necessidade de explicação. Podemos voltar
indefinidamente para esta maré , escutá-la com ouvidos nostálgicos ou cristalinos, vê-la com os
olhos da alma e senti-la com a espessura da memória, pois o artista compreendeu o que fazer:
Bonato incorpora à sua experiência a experiência do mundo, de um mundo que não deve ser
reconstituído mas oferecido em toda sua potencialidade.

O artista reformula e devolve tudo o que absorveu. E como isso é vida, deve retornar ao curso
da vida. Maré alta, maré baixa. Num ato de genuína compaixão e generosidade, Ernesto compartilha
isso tudo conosco.


João Carlos
setembro 2012

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