memória

Alain Fleurent | performance de Ernesto Bonato
Um menino caminha pela praia pisando na casca açucarada que a água e o vento depositaram na areia. Seus olhos vasculham o chão seguidos por uma sombra azulada. A não ser pelos rastros de caranguejos, tudo ali parece intacto. Sob o céu aberto, ladeado pela curva do mar e falésias vermelhas, o menino segue franjas de detritos trazidos pela rebentação em noites estrondosas. Tudo está seco agora, recoberto por uma fina camada de sal e polido pelo tempo. Entre ramas de sargaço e carcaças brancas, busca por sinais de mundos. Encontra um pedaço de corda azul que logo abandona ao olhar para uma lata de conservas com inscrições em outra língua. A lata ainda está fechada e cheia de água. A inscrição diz ser água potável, ração diária. Olha em direção ao mar verde e azul com assombro até sua visão dissolver-se no horizonte e em pensamentos. Carrega a lata por algum tempo imaginando que ela pertencia a algum bote salva-vidas perdido em um naufrágio. Deixa a lata num lugar marcado, vai pegar na volta. Segue de mãos livres até encontrar uma madeira cinza prateada tão polida quanto uma ferramenta bem usada. Faz dela um cajado e remexe com ele os montes de algas que desprendem um cheiro acre de maresia. Às vezes descobre ovas secas de tubarão, cascas de crustáceos enormes, fragmentos de redes, arcabouços de ouriços, pedaços de plásticos sujos de piche com inscrições em línguas desconhecidas. Mais perto d’água, onde a areia é morena e transpira por milhões de olhos, pisando sobre o céu refletido, encontra uma aplysia agonizante que devolve às ondas para vê-la nadar. Sente a areia sob seus pés erodindo com o refluxo da água e fica brincando com isso por um tempo. Depois, continua a caminhar seguindo a linha ondulada de conchas que se forma na orla. Adiante, meio soterrada na areia, lavada pela espuma do mar, avista uma tábua com cracas de tinta e um enigma entalhado. Não sabe o seu significado. Talvez nunca saiba. Caminha assim pelo umbral de um mundo cuja borda é refeita a cada instante.Suas pupilas são dois pontos negros em uma imensidão espelhada.

Ernesto Bonato, junho de 2012

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